Pixel Art: tudo que eu aprendi fazendo
Reportagem publicada em 2022 quando fiz uma imersão em videogames 16-bit, AVGN, Pixel Art e tendinites escabrosas.
Conforme prometido no último post da newsletter aqui está o texto da reportagem sobre Pixel Art publicada em 2022 no meu antigo fanzine Elefântico News.
No final deste texto, deixei o link do PDF do fanzine para os mais curiosos baixarem e curtirem as outras seções da publicação original, tipo o editorial em quadrinhos e as atualizações da época.
PS.: na parte final do texto há menções às imagens estarem todas em preto e branco, mas isso vocês ignorem, já que era uma informação estritamente direcionada à publicação impressa original. Apesar disso, algumas ilustras, como a que abre a matéria, realmente foram realmente desenhadas em p&b.
Cresci (e muito) rodeado de coisas arrombadas. A rua do lugar onde eu morava era arrombada. O condomínio em si também era arrombado. A TV da sala de casa era extremamente arrombada e tinha catorze polegadas. Nessa época, eu tinha um Super Nintendo arrombado, que minha madrinha arrombada trouxe pra mim do arrombado país Paraguai.
Nunca tive sequer uma fita pra enfiar naquela desgraça. Era pra ter sido uma experiência foda de contato com os games, mas, infelizmente, pelas condições financeiras da época, foi arrombada. Aliás, que época arrombada, os anos 1990. Tenho muitas saudades.
Costumava comprar (às vezes) revistas de videogame pra ver as imagens dos jogos que eu não tinha. Esses jogos, no caso, eram todos os existentes. Naquela época, chamavam videogame de jogo e jogo era coisa de jovem. Nenhum pai e nenhuma mãe tinha ou sequer cogitava ter um jogo.
Quando minha mãe, que não é arrombada, podia, ela me dava revistinhas de games porque ela me amava. A experiência de folhear aquelas publicações era, a seu modo, minha forma de jogar e eu amava jogar. Também amava minha mãe.
Uma das coisas que era genuinamente fascinante pra mim no meu ato de jogar era comparar as imagens das capas dos jogos com as imagens dos jogos em si. Eu achava incrível como, apesar de serem totalmente diferentes, eram idênticas. Normalmente, a capa era uma pintura feita em guache ou aquarela numa superfície três a quatro vezes maior que o tamanho da área ocupada pela impressão.
Eu não sabia disso na época, mas agora eu sei porque eu sou ilustrador profissional. Por outro lado, absolutamente todas imagens do jogo eram construídas digitalmente em (minúsculas) telas de 256px x 224px (no caso do Super Nintendo) e, posteriormente, esticadas para outros tamanhos. Isso se chama Pixel Art e eu também só sei disso porque, hoje, eu sou ilustrador profissional.
Como aquela era uma época muito arrombada, a turma que criava jogos tinha que se virar. Embora conte com o auxílio de ser digital e, consequentemente, reprogramável a cada novo pixel adicionado, a Pixel Art depende da capacidade do artista de reduzir a composição da figura ao mínimo essencial.
No Super Nintendo, o processador operava com 16-bit de taxa de amostragem, mas a paleta de cores era uma estrutura à parte. Restrita a uma totalidade de 15-bit de taxa de amostragem - ou seja, 32.768 cores disponíveis, mas limitadas a arrombados 256 tons exibidos simultaneamente na arrombada tela de 256px x 224px - a Pixel Art do Super Nintendo dispunha de muitas cores, mas não de muito espaço… Esse tamanho de tela, vale salientar, equivale a mais ou menos 9cm x 8cm, que eram esticados em televisores de, no mínimo, catorze polegadas até atingirem 31 cm x 17,5 cm.
Como a vida é composta por uma cadência de acontecimentos que são arrombados dia sim, dia não, em algum dos meus dias bons, joguei Super Nintendo pela primeira vez e me apaixonei pelas distorções causadas pelo alargamento das imagens na tela da TV. Fiquei muito impressionado com aquelas figuras em movimento e, sobretudo, com a forma como tudo soava harmônico e autocontido.
Em cada jogo, eu podia identificar a criação de um universo próprio, com suas próprias versões de pessoas, árvores, veículos, céu, mar, gestos e expressões.
Eu não sabia que isso é um conceito literário chamado verossimilhança. Hoje, eu sei porque eu sou roteirista profissional. Aliás, mais que somente no campo da teoria literária, a interpretação da verossimilhança no mundo em 16-bit facilmente pode nos transportar à obra de um grego arrombado chamado Aristóteles.
Aristóteles viveu num período cerca de trezentos anos antes do arrombado do Cristo dar as caras. Aristóteles, num livro chamado Poética, discute a arte segundo o conceito da mímesis, ou seja, a arte enquanto representação da vida. Aristóteles enxerga a imitação da vida pela arte como um caminho para chegar à catarse, ou, em outras palavras, ao expurgo de um sentimento. E, como Aristóteles era um arrombado, eu vou ter que simplificar as coisas aqui pra que este texto não se torne insuportável.
Ao enxergar, por exemplo, a representação de uma árvore em Pixel Art feita na era dos videogames de16-bit de processamento, o observador percebe duas coisas. A primeira é que a árvore se trata, de fato, de uma árvore. A segunda é que, embora seja uma árvore e seja possível reconhecê-la como uma árvore, ela não parece em nada com uma árvore natural. Então, fica a reflexão: a Pixel Art da árvore, na realidade, é a materialização da ideia de árvore.
No século 20, um outro arrombado chamado Ferdinand de Saussure vai criar uma tal de Linguística (uma das coisas mais arrombadas que existe) e vai pegar essa árvore e dividir entre Significante, Significado e Signo. Apesar de o Signo “árvore” ter o mesmo Significante, tem Significados que podem ser tão variados quanto possíveis e pelos mais diversos motivos. O motivo que mais me encanta é: a intenção narrativa com a qual aquele Significado foi gerado.
E é aqui que chegamos ao ponto fundamental onde a Filosofia e a Linguística se encontram com os códigos binários. Quando um desenvolvedor de jogos e, consequentemente, contador de histórias, queria colocar seu jogo no mundo, mas só tinha 256px x 224px pra mostrar a que veio, as sensibilidades precisavam ser elevadas ao máximo.
Essas sensibilidades, há pouco mais de 25 anos, sinalizavam não só jogos de videogame, mas também compunham uma visão de realidade virtual cujo tempo provou ser imortal. Distante do arrombado grau de realismo que hoje a tecnologia dos videogames nos proporciona, aquilo que a Pixel Art representa enquanto gênero de artes gráficas é uma percepção da realidade que pouco se assemelha à vida que começa e termina por ordem da natureza.
Não funcionando exatamente como uma fuga, mas como uma autolimitação estética, a Pixel Art, no presente, é uma linguagem própria, independente e que, enquanto houver existência, será perpetuada pelas possibilidades criativas com as quais ela traduz nossa percepção sensorial no mínimo possível de imagens.
Esteticamente, a Pixel Art é a forma universal de representação artística na imagem digital. Vamos dividir o termo: Pixel e Art. Por um lado, se levado à radicalidade, o conceito do “pixel” sinaliza a mínima partícula de imagem exposta numa tela. Isso dá espaço para categorizar como Pixel Art, então, qualquer coisa visualizada eletronicamente.
Porém, na prática, não é assim. O que me fascina nesse universo não é precisamente o “pixel”, e sim, a “art”. Ou seja, é a criatividade dos artistas, que, para conceber uma experiência estética, utilizam essa técnica chamada de Pixel Art, que, por sua vez, é versada em reduzir quase ao mínimo as possibilidades de exibição imagética do objeto representado.
Grandes merda essa linguagem técnica, hein?!?!
É assim.
Tem dois jogos: Chrono Trigger e Earthbound.
Ambos são RPGs eletrônicos lançados pro Super Nintendo, em 1995. Dá pra dizer que são antíteses. O que um tem de sério, o outro tem esculhambado. As diferenças são diametrais e se estendem da história e da ambientação narrativa à concepção visual da porra toda. Ou seja, duas visões opostas de Pixel Art dentro do mesmo gênero de videogame, concebidas com as mesmas limitações.
Ambos são obras-primas, inclusive. A seu modo, são esferoblásticos, farapêuticos e cataclismicamente maravilhosos.
Chrono Trigger é um jogo sério, cheio de dramas, momentos solenes e batalhas épicas. Blá, blá, blá... é aquela velha história: Princesas, maldições, espadas lendárias, castelos e tudo mais. Só que com viagem no tempo. Não entendam mal, é um jogo brilhante, espetacular, mas não tem uma sinopse tããão empolgante.
Earthbound, por outro lado, é uma loucura hilariante que não teria sido criada nem por um japonês caolho depois de misturar LSD com chá de bosta de dragão de Komodo. Quem escreveu essa porra não estava doidão; na verdade, nasceu doidão. Não saberia como descrever a capacidade de cada ínfima linha de diálogo com cada ínfimo e irrelevante NPC ser cativante e te prender na história.
Existe, inclusive, uma versão do jogo em português do Brasil, que é uma adaptação perfeita daquele universo diegético para a nossa concepção de mundo. É muito melhor que qualquer filme de comédia (menos Débi & Lóide).
Vamo olhar pra essas duas imagens e comparar as diferenças entre a Pixel Art dos jogos. Bom, primeiramente, vou logo fazer a mea culpa, porque este zine é impresso em p&b e as imagens aqui, de vez em sempre, são bostas cagadas com sangue e vísceras. Vocês, porém, podem, com seus celulares, entrar no Google.
Para representar uma atmosfera lúdica, Earthbound usa, no máximo, quatro tons de cada cor na criação de suas figuras. Observem a grama. É uma grande camada uniforme, sem nenhum semitom. Em Chrono Trigger, a composição cromática é pensada a partir de uma paleta substancialmente mais complexa, com inúmeros tons, que vão do claro ao escuro.
Essa característica proporciona um uso mais acentuado das sombras na hora de criar as figuras, o que contribui para a carga dramática da cena.
Outra coisa interessante é notar que em Earthbound, uma obra de humor, a maioria das figuras possui um contorno preto, que as aproxima do cartum.
Em Chrono Trigger, o contorno preto é restrito aos personagens e não é por uma questão narrativa. A função, nesse caso, é realmente separá-los do cenário, cuja criação é toda forjada sobre inúmeros tons.
MINI AULA DE TEORIA CROMÁTICA
Muito bem, turma, vamos lá. A gente tá falando aqui de cor, mas a porra do zine é em p&b. E agora? Agora, eu vou explicar uma coisinha que vai facilitar a vida de todo mundo.
É o seguinte: nossos zolhos, os zolhos humanos, possuem dois tipos de células que processam a cor. Os cones e os bastonetes. Os cones, por sua vez, são divididos em três tipos, que processam o vermelho, o azul e o verde. Os bastonetes processam os tons de cinza - tudo que existe entre o preto absoluto ao branco absoluto.
Cada cor tem um valor de cinza dentro dela. A gente chama isso de valor tonal. E é a partir dele que se cria contraste entre as figuras. Neste zine, inclusive, tudo que vocês estão vendo são imagens despidas de suas cores, preservando só os valores tonais delas.
Entendi porra nenhuma, mas achei muito lindo.
Que coluna sensacional