O Eternauta e a arte de matar cachorro a grito
A nova série da Netflix tem mais a nos ensinar do que uma mera sentada à tv.
Estreou, no último dia 30 de abril, na Netflix, a primeira temporada de O Eternauta, série baseada na história em quadrinhos argentina de mesmo nome escrita por Héctor Germán Oesterheld e desenhada por Francisco Solano López.
Em seis capítulos, o seriado adapta para o ano de 2003 parte da trama do gibi original, que se passa em 1959 e é uma espécie de manifesto contra a ditadura hermana e a opressão dos regimes totalitários.
A Argentina é um país fascinante. Ela está em crise econômica desde que existe, os indicadores sociais são só desgraça em cima de desgraça e tem até um maluco fascistóide pra chamar de seu no comando do país neste exato momento…
…de alguma forma, porém, a cultura albiceleste floresce, é perene e não cansa de nos encantar por meio do cinema, da música, da literatura e, é claro, dos quadrinhos.
Falar sobre O Eternauta, portanto, seria chover no molhado. O personagem Juan Salvo, com seu outfit de sobrevivente nuclear da shopee, é um dos maiores ícones das HQs de todos os tempos. Presente no imaginário popular dos hermanos, ele é um símbolo de resistência política e da preservação de algo que está muito fora de moda: a capacidade de pensar contra o sistema.
Publicada em capítulos semanais entre 1957 e 1959, na revista Hora Cero, O Eternauta foi o esforço definitivo de seu criador, Héctor Oesterheld, para combater a ascensão de um regime que, em 1977, tiraria não só sua vida, mas também a vida de suas quatro filhas.
A família Oesterheld perseverou mutilada e resiliente apenas com a viúva do escritor, Elsa (falecida em 2015), e o neto Martín, que hoje atua na preservação da memória da obra de seu avô e participou da adaptação de O Eternauta para a telinha como consultor criativo.
Inclusive, dado o espírito do tempo, não dá pra conceber que seja uma mera coincidência que o lançamento da série de O Eternauta tenha acontecido tão pouco tempo após babilônia em chamas que foi o filme Ainda Estou Aqui, do dono do Itaú Walter Salles.
Num mundo de identidades e atenções fragmentadas, o olhar à opressão parece mais relevante que nunca.
Dito isso, o seriado produzido pela Netflix é bem bonzinho. Embora descarte personagens aqui, crie muitos outros ali, reinvente subtramas e atualize a ambientação da obra para o século 21, dá pra dizer que o gibi e a série são artérias diferentes que convergem para um mesmo coração.
Como na Argentina existe uma lei que obriga 100% de toda sua produção audiovisual a contar com a presença de Ricardo Darín, a escolha do ator para o papel de Juan Salvo pareceu adequada. Ele entrega uma performance onde salta aos olhos a resignação, a vontade e a disciplina de seu personagem.
Renovada para uma segunda temporada, O Eternauta é parte de uma tríptico de séries sul-americanas produzidas pela Netflix composto ainda pela brasileira Senna e pela colombiana Cem Anos De Solidão, que adapta o livro homônimo de Gabriel Garcia Marquez.
EXTRA 1 - Viralatismo brasilis e o nosso campeão
Sobre o último parágrafo deste texto, não dá pra parar de pensar - e essa pode ser uma associação livre e descompromissada - que enquanto nossos hermanos ganharam séries derivadas de obras de grande peso literário e social, o Brasilis ganhou… Senna, seriado de um ricaço evangélico que virou herói da classe média disputando corridas de carro fora do Brasil.
E aqui fica o disclaimer: eu adoro Fórmula 1, acompanho essa merda desde que me entendo por gente e acho o folclore criado em cima do esporte muito fascinante. Ainda assim, por que não tivemos uma série adaptada de Diomedes, gibi de Lourenço Mutarelli, ou qualquer coisa assim?
Em 2020, numa entrevista ao podcast Confins do Universo #109, viabilizado pelo site Universo HQ, o pesquisador Paulo Ramos meio que explicou o motivo muito antes de tudo isso acontecer:
“Nós temos, historicamente, no Brasil, a tendência de entender que o externo é melhor que o interno. É uma síndrome mesmo… Pode buscar. Nós fomos invadidos pelos europeus, que começaram a impor uma cultura aqui no Brasil. Depois, no século XIX, nós tínhamos o domínio comercial da Inglaterra, mas o domínio cultural muito forte da França. As coisas boas eram as que vinham da Europa. "Meu filho, vai fazer faculdade na Europa, ele vai ser médico".
No século XX, esse predomínio francês continua, principalmente na área acadêmica, na área cultural… Mas depois da Segunda Guerra, o domínio norte-americano fica evidente aqui no Brasil. E nós entendemos que os produtos externos vindos dos Estados Unidos, a partir da década de 1940, são os melhores produtos para serem consumidos e isso funciona até hoje. Isso é incrustado culturalmente no Brasil. A gente vai a shopping centers, a gente não vai a centros comerciais. É um exemplo besta, mas de como isso está cravado na nossa cultura.
A nossa geração, em termos culturais, sempre viu os filmes norte-americanos como melhores que os brasileiros, a literatura estrangeira muitas vezes melhor que a brasileira e nos quadrinhos não foi diferente. Desde a década de 1930, que veio em massa a produção norte-americana, a gente tem entendido que os quadrinhos norte-americanos são melhores(...). Nós não valorizamos a nossa produção.”
EXTRA 2 - Puxando a sardinha
No meu gibi Una Gira En Sudamerica Com O Conjunto De Música Clinge Merda, que se passa no Brasil, Uruguai e Argentina e é uma adaptação (bem livre, tá?) do livro homônimo de Fábio Mozine, há uma menção leve ao Eternauta no nome de dois personagens chamados Héctor e Germán.





A ideia era ter um terceiro chamado Oesterheld, mas eu não lembro por qual motivo (prazos provavelmente) isso acabou não rolando.