Formas de desperdiçar a vida: faça fanzines
Fanzines, fanzocas, fanzones, fanzinhos, facinhos, faça você mesmo.
Uns dias atrás fui dar uma oficina de fanzines aos alunos do curso de jornalismo da Unicap (Universidade Católica de Pernambuco) a convite da professora Carla Teixeira.
A primeira pergunta que me fizeram foi: o que é um fanzine?
Se você chegou até esta newsletter, provavelmente já sabe muito bem o que é um fanzine, mas eu vou explicar de novo mesmo assim:
Em 2025, um fanzine é um discurso. Não é um tipo de publicação artesanal, não é um meio de comunicação marginal e não é uma solução de baixo orçamento para sua autopublicação.
Em 2025, num mundo onde quase não temos mais livros e revistas impressas e as IA roubaram o mercado de trabalho dos ilustradores (mês passado perdi todos os meus clientes para essas porras, então assine a versão paga desta newsletter, pelo amor de deus!), fazer um fanzine significa se posicionar politicamente.
É como outrora aconteceu na música…
Na década de 1990, a popularização das tecnologias de gravação digital acarretou o barateamento de diversos equipamentos de home studio, como, por exemplo, os famosos gravadores portáteis de 4 canais. Não demorou, portanto, para que uma infinidade de artistas desprezados pelas grandes gravadoras começasse a gravar discos inteiros em casa, utilizando esse tipo de aparelhagem.
Como era proveniente de equipamentos baratos e voltados para o público amador, o som desses álbuns foi chamado de lo-fi, uma redução da expressão low fidelity recording, ou, em outras palavras, uma gravação de baixa fidelidade em relação à fonte sonora original.
Eis que, com o tempo, as tecnologias digitais também invadiram o mundo dos equipamentos caseiros. E aí a grande ironia: numa realidade em que já não fazia mais sentido recorrer a grandes estúdios para uma gravação de alta qualidade, o lo-fi surpreendentemente perseverou:
Não se tratava mais de uma alternativa técnica, mas sim de uma linguagem, de um modo de se expressar e de produzir que contestava o status quo e democratizava o acesso à cultura.
No mundo dos fanzines e da autopublicação é a mesma coisa.
Softwares de manipulação de imagem como o Photoshop e o InDesign dão ao autor um controle quase absoluto sobre o acabamento de sua obra sem que ele precise sair de casa. Ao mesmo tempo, processos de impressão digital para pequenas tiragens possibilitam a fabricação de livros coloridos e de várias páginas por preços bastante acessíveis.
A grande questão é que muitas vezes esse desbunde técnico não é suficiente…
Quando o cabra, nos dias de hoje, imprime, encaderna, refila e assina manualmente uma tiragem de fanzines para distribuir entre seu público, ele está irradiando exatamente aquilo que uma IA ou qualquer processo automatizado de impressão jamais conseguirá reproduzir: o calor humano.
Fanzines têm tiragens de poucas unidades e são vendidos diretamente pelos autores. Muitas vezes, são vendidos até para outros autores. Existe uma troca nesse processo e ela é honesta e verdadeira. No final de tudo, é sobre fazer parte de uma comunidade de gente que vê a vida e sente o mundo da mesma forma que você.
Além disso, a artesanalidade da confecção de um zine é um elemento que transforma, a seu modo, cada exemplar numa espécie de meio termo entre a arte original e uma peça reproduzida tecnicamente. Isso faz com que todo fanzine seja único.
Simbolicamente, essa característica se alinha à nossa própria subjetividade, ou seja, àquilo que nos caracteriza como sujeitos e é responsável por gerar a interface com a qual experimentamos e somos experimentados pelo mundo. Essa, enfim, é a relação que define o fanzine como um discurso e uma linguagem.
Recentemente, meu amigo Rodrigo Okuyama, que mora no Japão há cinco anos, veio ao Brasil passar férias e contou alguns causos dessa vivência inusitada dele no fanzine Meu Nome É Rodrigo, desenhado pelos amigos Victor Bello, Emily Bonna, Carlos Panhoca, Cynthia B. e Rafael Cardoso (que time!). Não conheço uma publicação que tenha capturado a essência do fanzine no século 21 da mesma forma que essa.
O trabalho foi impresso em dois acabamentos diferentes, ambos encadernados à mão por Rodrigo e tem até um espaço para que seja feita uma dedicatória específica para cada leitor. É um fanzine de onde transborda humanidade, característica cada vez mais rara na nossa sociedade afundada em IAs, chatsGPT e culturalmente pautada pelos lançamentos lixosos da Netflix.
Meu Nome É Rodrigo, cuja versão impressa em risografia tem a tiragem de apenas 40 exemplares, encapsula uma experiência verdadeiramente emocionante. Ele me deu a versão p&b quando esteve no Recife mês passado e depois mandou a outra (e mais alguns extras) pelos Correios.
Eu tenho relido esse fanzine com certa regularidade. Num período de baixíssimo rendimento financeiro do meu trabalho dado o incidente IA no mês passado, Meu Nome É Rodrigo tem me lembrado da razão pela qual eu comecei o Elefantes Na Sala.
Inclusive, antes de voltar para o Japão, o danado do Rodrigo ainda arrumou tempo pra deixar mais uma encadernação em terras brasileiras: o zine Adriano Gás - Kung Fu, A Arte Da Paz, de Victor Bello, que, junto a Lobo Ramirez, provavelmente são os dois quadrinistas que mais me influenciaram, mas isso é assunto pra um próximo texto…